Como a piscicultura pode ser uma alternativa para o Amazonas

Como a piscicultura pode ser uma alternativa para o Amazonas

Um mercado estabelecido à partir de uma cultura ancestral, alta produtividade com baixo impacto ambiental e que pode garantir geração de emprego e renda para a população regional. Dentre as diversas alternativas econômicas existentes na Amazônia, a piscicultura se destaca como um dos caminhos mais promissores

“É preciso explorar as potencialidades da Amazônia transformá-las em riqueza”. Em algum momento da sua vida você provavelmente ouviu essa frase ou a variação dela em algum debate sobre o bioma Amazônico. Seja pelos problemas sociais da região, seja pela necessidade de preservar o meio ambiente, pela manutenção ou não dos incentivos da Zona Franca de Manaus, etc. Ela é praticamente um clichê.

Mas, de fato, a Amazônia oferece muitas possibilidades. Todas, no entanto, aparecem com um desafio: explorar com mínimo impacto ambiental possível. Mas há uma modalidade econômica que preenche esses requisitos com enorme potencial econômico e que poderia receber mais atenção do poder público e da sociedade civil: a piscicultura.

Um elemento da gastronomia amazônica mais admirado são nossos peixes. Fundamental para o ribeirinho e apreciado pelos habitantes das grandes cidades, os peixes são alimentos com alto teor de proteína, de vitamina e outros nutrientes importantes para nossa saúde. Em vez de serem pescados em rios ou no mar, eles podem também ser criados em cativeiro.

Mercado estabelecido

Existem várias vantagens em relação ao consumo de peixe. O Amazonas, por exemplo é extremamente rico em recursos aquáticos e possui uma grande população pesqueira. Tal consumo favorece desde pequenos pescadores e piscicultores familiares, além de toda cadeia produtiva e até mesmo grandes empresas que exportam o pescado aqui da região.

“E isso não tem relação apenas com o consumo direto de peixe, mas sim com toda a cadeia produtiva envolvida, desde insumos como rações, compra de alevinos, até mesmo equipamentos de pesca como barcos e redes. Existe um aspecto cultural nesse consumo e isso interfere na economia regional”, lembra o professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Aquicultura da Universidade Nilton Lins, Thiago Mendes de Freitas.

Um exemplo de sucesso

No estado do Amazonas, já existe uma iniciativa que tem encontrado na piscicultura uma importante alternativa econômica. Criado em 2018, o Coletivo do Pirarucu é composto por manejadores e manejadoras de pirarucu de unidades de conservação, terras indígenas e áreas de acordo de pesca, representados por lideranças e associações comunitárias das bacias dos rios Purus, Negro, Juruá e Solimões; instituições de apoio técnico e de governo de diferentes instâncias.

Mais recentemente, o projeto Cadeias de Valor Sustentáveis, que deu suporte ao Coletivo do Pirarucu em um conjunto de ações, entre elas uma marca coletiva chamada “Gosto da Amazônia”, coordenada pela Asproc – Associação de Produtores Rurais de Carauari. Hoje, essa marca recepciona a produção de vários coletivos de manejo.

“Uma das coisas que a gente busca com esse projeto é justamente divulgar o manejo e com isso consolidar a abertura de novos mercados em outros territórios brasileiros e, quem sabe, trazendo investimentos para o setor, para o aprimoramento da cadeia produtiva”, explica Ana Cláudia Torres, coordenadora do programa de manejo de pesca do Instituto Mamirauá (organização que integra o Coletivo do Pirarucu).

Um método utilizado, segundo Ana Cláudia, é a divulgação através da cultura. “Aquilo que era um desafio inicial de acessar – outras praças comerciais – através dessa marca coletiva está sendo feito por meio de festivais, de promoção de eventos e articulação com empresários. Da parte dos grupos de manejo, tem sido aprimorado os processos de captura, pós captura e boas práticas de manipulação para continuar entregando um produto de qualidade e podendo atribuir uma melhor rentabilidade a esses produtores”, comemora a coordenadora.

Para os moradores da região, a iniciativa tem se mostrado fundamental ao aliar geração de emprego e renda e sustentabilidade. “Há diversos benefícios associados a isso. Primeiro, um maior número de coletivos de pescadores dispostos a mudar a sua postura e aderir as práticas de manejo e com isso a gente aumenta a abrangência da área de proteção da floresta amazônica, dos lagos e da baixa emissão de carbono. Relativos ao aspecto econômico, elevar a rentabilidade dos manejadores, de maneira que se torne mais vantajoso trabalhar legalmente do que ilegalmente”, afirma Torres.

Sustentabilidade

A capacidade de criar peixes em ambientes controlados tem a vantagem extra: economiza o mais importante recurso para a espécie humana: a água. Por mais paradoxal que pareça – afinal, os peixes são criados na água – a atividade possibilita o uso da mesma quantidade de água para criação de vários peixes.

“Você imagina quantos litros de água são necessários pra produzir um quilo de carne vermelha? É pelo menos dez vezes mais do que um quilo de peixe”, explica Elizabeth Gusmão, pesquisadora titular e líder da aquicultura do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Além disso, a piscicultura também necessita de um espaço bem menor para produção, ao contrário da criação de rebanhos que pedem o desmatamento de áreas muito maior para o pasto.

Outra vantagem da piscicultura está na tecnologia. Hoje, as técnicas agregadas às cadeias de produção estão tão avançadas que são utilizados espaços mínimos para a produção de toneladas de peixes. “O que o agronegócio produz em um espaço grande, de 100 hectares, a piscicultura produz em um tanque de 100 litros”, afirma Gusmão.

A aquicultura – que são todas as atividades que envolvem criação de animais em ambientes aquáticos, incluindo a piscicultura – tem a vantagem ainda de favorecer a chamada economia circular. Isso porque novas tecnologias de manejo estão propiciando a reutilização de boa parte do que é usado na cadeia produtiva.

“É possível associar a aquicultura com, por exemplo, a produção vegetal, a chamada aquaponia. Com isso, o produtor de peixe pode inclusive desenvolver atividades paralelas, diminuindo também a quantidade de resíduos”, ensina a pesquisadora. A tecnologia que permite a reutilização da água e que retira impurezas na piscicultura, chamada bioflocos, já está disponível, tanto pelo INPA quanto pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Assim como toda atividade de produção animal a aquicultura também pode trazer impactos ambientais. “Tudo vai depender do sistema de criação adotado, e nesse sentido a assistência técnica é fundamental para uma produção sustentável. por isso a necessidade da implantação de técnicas de manejo e produção eficientes e menos impactantes. É por isso que sistemas de produção sustentáveis tem sido alvo das pesquisas em aquicultura ao redor do mundo e com elas vários impactos ambientais podem ser minimizados”, pondera Thiago de Freitas.

Desafios

Mesmo com tecnologia e iniciativas de sucesso, a atividade ainda encontra desafios para expandir seus negócios, especialmente quando esbarra na complexa logística da região. “Sem dúvida a etapa mais desafiadora do manejo é a comercialização. Essa parte mais prática, de capacitações, de orientações e aconselhamento às comunidades, dado que essa atividade já tem 24 anos acontecendo, ela já está bem consolidada.  O maior desafio é justamente que estamos crescendo em escala, em termos de produção, poder acessar outros mercados”, analisa Ana Cláudia Torres.

Outro problema encontrado é o mercado clandestino. “Uma vez que no mercado estadual esse peixe, que é legal, compete também com o comércio clandestino desse peixe, então isso traz certas limitações. É uma competição desleal, porque o pirarucu ilegal ele é oferecido ao longo do ano inteiro, enquanto o produto legal, devido as suas restrições justamente por cuidar da conservação do recurso, é ofertado apenas em uma época do ano, com um preço que acaba perdendo em termos de valor pago”, afirma a coordenadora do programa.

Para Ana Cláudia Torres, o maior desafio tem sido manter em alta a rentabilidade da atividade dos produtores, pois há uma grande procura que esses manejadores têm para trabalhar ilegalmente com a atividade. “A gente caminha muito bem do ponto de vista ambiental, do ponto de vista social, mas o econômico ainda é um desafio, de valorizar o produto e com isso elevar a renda dos manejadores”, avalia.

Como expandir

Mesmo estabelecido, o mercado da piscicultura no Amazonas ainda precisa crescer para atingir o seu potencial. Nesse ponto entra em cena a participação do poder público e também da sociedade civil. “O setor publico deve aumentar seus investimentos na área e atuar no seu desenvolvimento, enquanto a sociedade civil, abrange os próprios atores da atividade aquícola, que necessitam buscar capacitação técnica em piscicultura e aprimorar suas técnicas de produção mais sustentáveis”, sugere o professor Thiago Mendes de Freitas.

Para Thiago, a articulação entre esses setores é importante para o desenvolvimento sustentável da aquicultura, assim como, uma atuação direta na cadeia produtiva que apresenta alguns gargalos a serem solucionados como por exemplo o alto custo dos insumos (rações, equipamentos e outros) utilizados na cadeia produtiva. “Outro aspecto bastante atual é o incentivo a inovação e o empreendedorismo na área, o que tem agregado ao desenvolvimento da atividade”, avalia.

“A sociedade pode ajudar primeiro entendendo essa lógica do manejo –  e nós temos empenhado esforços em comunicar melhor. A sociedade entender que ela pode ter um papel fundamental de regular o mercado. De que forma? Não comprando peixe ilegal. Porque com a simples ação passiva de não comprar já contribui muito, pois o peixe ilegal só tem saída porque há pessoas que compram”, pede Ana Cláudia Torres, coordenadora Instituto Mamirauá.

“Na medida que o consumidor entender que quando ele adquire um produto ilegal está contribuindo para ilegalidade do processo, para que comunidades não se fortaleçam, para que não haja conservação do recurso – virar essa chave, entender isso já garante que o produto legal tenha maior acessibilidade e diminua a competição que tem com o ilegal. Com isso, aumenta a demanda e a rentabilidade para os manejadores, e aumenta também a oferta para os consumidores”, ensina. 

Segundo dados da Associação Brasileira de Piscicultura, a produção nacional de peixe de cultivo cresceu 5,9% em 2020, com 802,9 mil toneladas. No entanto, a oferta de peixes nativos recuou 3,2%, sendo o Amazonas o quinto principal produtor. No total da piscicultura, a Região Norte constitui a terceira de maior produção, atrás do Sul e Nordeste.

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